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Sociedade

Reportagem: A beleza natural do Poço das Talhas ganhou núcleo museológico (C/ÁUDIO e FOTOS)

30/05/2021 às 15:05
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Poço das Talhas

Reportagem e fotos: Jerónimo Belo Jorge

O Poço das Talhas, perto da Queixoperra, no concelho de Mação, parece ter saído de um cenário de um filme. Há uma ribeira que corre em leito sinuoso cavado ao longo de muitos séculos nas rochas. Há duas casinhas de pedra por entre a zona de matos e os socalcos de terra preparada para as sementeiras. Há uma ponte, que terá sido construída há muitos anos, para passar a ribeira de um lado para o outro. E há um miradouro desta paisagem encrostada na encosta que parece um muro de um poço, com uma picota (usada noutros tempos para tirar água) e com algumas talhas à volta.
E para chegar ao Poço das Talhas ou conhece o terreno, ou “apanha” a GR55 ou a PRMAC 5, ambas as rotas estão sinalizadas, ou então registe as coordenadas (GPS): N 39º 32′ 35.099” W 8º 3′ 59.699”.

Nos inícios do século passado todas as linhas de água, mas pequenas, as ribeiras, tinham ao longo do seu percurso muitos lagares de azeite e azenhas para moer os cereais. A força motriz da água era, tal como o vento nos montes, aproveitada pelas gentes das aldeias que por ali espalhavam vida. Havia, em cada terra, dezenas de pequenas azenhas ao longo das ribeiras. E ao lado destas, os socalcos das encostas, eram aproveitados para fazer o cultivo hortícola. E entre azenhas familiares havia outras de quem tinha como profissão principal ser moleiro. Era o caso do avô de Rui Silva. No inverno e primavera moía os cereais na azenha do Poço das Talhas e quando a água escasseava, nos meses mais secos, subia ao monte e abria as velas do moinho. Mas era, ali na encosta da ribeira, que fazia a sua vida. Que fazia o cultivo da sua horta.
A vida do avô do Rui era, na altura, a vida de tantas outras pessoas ao longo destas linhas de água. Porque naqueles locais, mais ermos e pouco aráveis, a água fazia toda a diferença.
A azenha terá sido o avô do Rui a construí-la. Fez uma levada a montante, uma espécie de pequeno açude para desviar uma parte da água para dar a força às rodas que, mecanicamente, fazem rodar as mós. E o processo parece ser, na realidade muito simples.

No caso desta azenha, há registos oficiais da Câmara Municipal de Mação, em relação a este moleiro, datados de 1924.

Mas, como tantas outras profissões ou atividades destas zonas do país, a evolução tecnológica e as fábricas levaram a que estas zonas fossem abandonadas e tivessem caído quase no esquecimento. Das várias dezenas de azenhas da Ribeira do Rio Frio entre Queixoperra, Penhascoso e Mouriscas, grande parte não existe, nem os seus vestígios, umas quantas ainda mostram algumas ruínas das estruturas e a funcionar serão duas ou três.

O Poço das Talhas não foi exceção. Aquela azenha e o palheiro deixaram as funções. Os incêndios que por ali passaram levaram o arvoredo das encostas e, igualmente, os telhados das construções. Até o acesso à ribeira passou a ser complicado, quando os burros deram lugar aos automóveis e o abandono fez com que os trilhos quase tivessem desaparecido.

Em 2013, no infortúnio de recuperar de uma doença grave Rui Silva virou-se para as memórias da sua infância e, entre passos morosos da recuperação, começou a pensar, e a sonhar, em voltar a dar vida aquele local que tão bem conhecia.

E, pouco a pouco, lá foi abrindo os matos para colocar a descoberto a azenha e o palheiro de apoio. Recuperou os telhados e a levada que levava a água a cair na roda que iria colocar a “pedra a rodar”. Depois foi estudar a preceito o mecanismo para poder voltar a moer. Os cabos que operam o desvio da água para a pedra ou para a ribeira. O mecanismo que faz parar a moagem quando o silo de madeira fica sem milho “para não desgastar as pedras”. É com orgulho que o Rui mostra como funcionam estas mecânicas ancestrais e que agora funcionam quando é preciso, desde que não falte a água na ribeira.

Aliás, a água é tudo. “Se for pouca (menos força motriz) a farinha não é tão fina”.

O sonho de ver todo o espaço a ser recuperado ganhou força com o apoio da irmã e do vizinho Cremildo que cedeu uma parte do terreno para fazer crescer o Poço das Talhas.

Como disse o vereador Vasco Marques, também ele um habitante da Queixoperra, houve talvez dois fatores importantes para o “renascimento” deste local. A pandemia, que levou a que muitos habitantes da aldeia tenham rodeado a ideia do Rui através da Associação da Queixoperra e as rotas (GR55, primeiro, e PRMAC5, depois) que trouxeram uma outra visibilidade aquela encosta.

Por outro lado, Vasco Estrela, presidente da Câmara de Mação destacou este trabalho da comunidade, com algum apoio da autarquia é certo. “A autarquia podia ter despejado aqui algum dinheiro e poderia ter feito algo interessante”, disse o presidente para a seguir enaltecer o empenho e a paixão com que o Rui e todos os que colaboraram puseram nesta recuperação da azenha e do espaço envolvente.

E voltando ao interior da azenha, que está a moer o milho, o Rui aponta para o lado, onde está uma segunda mó, fora do sítio, que quer colocar a funcionar já este verão. Explica, com orgulho, que as pedras são diferentes. Uma é melhor para o milho e a outra para o trigo. É a memória que tem do tempo do seu avô, quando o “trac trac trac” das mós se ouvia no exterior da azenha.

Coisas da terra, do mundo rural que apenas se encontram em memórias ou documentos de outros tempos e que agora, sempre que possível, podem voltar a mostrar a vida de meados do século passado. Afinal parece tão distante, face às evoluções tecnológicas, mas estamos a 70 ou 80 anos desses mesmos tempos.

E no Poço das Talhas, da Queixoperra, ao lado da azenha há uma ponte sobre a ribeira. Não tem um vão muito comprido, mas tem alguma altura. E quando falamos numa travessia natural da ribeira, Rui Silva coça a rir-se e diz que não, não é natural. “Foi no tempo do meu avô que foi construída. Uns homens que andavam aqui a construir a linha de Caminhos de Ferro da Beira Baixa vinham aqui beber uns copitos [de vinho]. E entre os copitos lá fizeram a ponte que é alta, mas mantém-se cá”.

E neste agitar das memórias, Rui Silva lembra-se de que os jovens, ma altura, faziam umas “malandrices” e mandavam umas pedras da ponte para a ribeira. Coisas de outros tempos. Hoje, diz com um sorriso no rosto: “fomos repor as coisas mais ou menos como eram antigamente”.

No Poço das Talhas ainda corre alguma água, menos que noutros tempos, mas há um dos poços que nunca fica a seco. Hoje ninguém vem para ali mandar uns mergulhos, pois “há outras ofertas”. Mas nos tempos de juventude do Rui aquele local era concorrido pela juventude. Havia muitos mergulhos e até alguns concursos a ver o qual conseguia mergulhar do ponto mais alto.

A entrevista de Rui Silva, à porta da sua azenha

Os tempos não voltam para trás. Agora pretende-se que o Poço das Talhas possa ser um atrativo, possa fazer com que ali se desloquem visitantes. Desde que não estraguem o que com suor e muita vontade o Rui e os amigos da Queixoperra foram construindo.

E mesmo os socalcos da encosta, à volta da azenha, vão tendo a terra preparada para alguns cultivos. Feijão e girassóis, pelo menos, já são visíveis nalguns destes talhões. Os outros têm a terra preparada.

E entre as muitas solicitações para explicar como funciona a azenha, o Rui vai agitando as suas próprias memórias. Tanto que quando se lhe pede para ficar à porta para tirar uma fotografia chama a mãe para “posar” ao seu lado.

A inauguração do Núcleo Museológico do Poço das Talhas

A manhã de sábado, 29 de maio, estava bem quente. Talvez uma das mais quentes deste 2021. Estava anunciada a inauguração do espaço museológico do Poço das Talhas. E não fosse a pandemia, que ainda obriga a regras no ajuntamento de pessoas, aquelas encostas teriam muito mais pessoas do que as que estiveram no descerramento de uma placa a evocar o dia.

O presidente da direção da Associação da Queixoperra, Flávio Santos, deixou duas notas muito simples que resumem o trabalho que ali foi feito: a inauguração no núcleo museológico assim como o lançamento da farinha do Poço das Talhas. Trata-se de uma forma de “vender” um produto turístico na Queixoperra, mas igualmente uma forma de levar o Poço das Talhas para “fora da nossa terra”.

Flávio Santos, presidente Associação Queixoperra

Vasco Marques, vereador da Câmara Municipal de Mação, revelou que o espaço museológico que foi inaugurado era, noutros tempos, o palheiro, ou a “casa dos burros”. E foi ali que colocaram algumas das ferramentas e alfaias, com as respetivas explicações, que fazem para da história da aldeia, daquela encosta, daquelas gentes. O vereador destaca, no entanto, que o espaço museológico vai muito além dos dois edifícios, que toda a área das encostas e da ribeira é que faz esse museu, ou eco museu, como se aventurou a chamar-lhe.

Depois deixou meia dúzia de palavras sobre a história das azenhas, do sonho do Rui e da vontade das gentes da Queixoperra. Há ainda a Lurdes, que começou a juntar as peças que estão no museu e Patrícia Marques que cedeu o espaço para que a Associação aí pudesse desenvolver esta nova vida do Poço das Talhas.

Vasco Marques, vereador CM Mação

Rui Silva, liderou o sonho que foi concretizado com o apoio da Queixoperra. E aos presentes fez questão de dizer isso mesmo, antes de ir por a água a correr pela levada para que o ruído da mó se pudesse voltar a fazer ouvir no Poço das Talhas.

Rui Silva, proprietário azenha

Presente neste ato inaugural do espaço museológico esteve o presidente da Câmara Municipal de Mação. Vasco Estrela que fez questão de destacar o trabalho desenvolvido pela comunidade. Muito mais interessante do que a autarquia despejar ali uns euros. Podia ter sido feito uma obra, seguramente, interessante, mas desta forma esta recuperação ganhou mais força. A força de uma comunidade, das pessoas e não a vontade apenas de uma instituição. E, para o presidente da Câmara, esta é uma força maior para aquilo que foi construído no Poço das Talhas.

E para além dos agradecimentos, naturais, o presidente da Câmara de Mação deixou a nota de que existe a memória para gerações futuras, mas que é preciso “sermos inteligentes na forma como vamos gerir o espaço, que não aguenta muita pressão humana”.

O Poço das Talhas já está a ser muito publicitado, pelas rotas, pela Câmara, por quem visita, pelo que é preciso criar valor com aquilo que existe.

Vasco Estrela, presidente CM Mação

Posto isto, o Núcleo Museológico está inaugurado, a azenha, haja água na ribeira, faz a moagem do milho [e no próximo inverno, quem sabe, de trigo], os poços da ribeira e as cascatas fazem fotos fantásticas, a ponte é um marco obrigatório, assim como o poço [simulado] que é miradouro também permite um pedaço de tempo a apreciar aquilo que a natureza criou e o homem melhorou. Fica na Queixoperra e enquadrado nas rotas GR55 ou PRMAC5. Visitável a qualquer momento, sendo que os melhores períodos são o inverno e a primavera, afinal de contas quando as encostas da ribeira ganham vida e cor.