Chegar até à casa de Laura é como uma viagem no tempo. Daquelas em que percorremos um passado que ficou ao acaso, perdido, entregue ao esquecimento. Em que não há uma mercearia, não há uma farmácia, não há carros… nem pessoas. Há apenas uma floresta densa, cortada ao meio por uma estrada para lado nenhum. Apenas pinheiros e eucaliptos, outrora verdejantes e assobiados pelo vento. Agora, frágeis e quebradiços ramos pintados de cinza.
Chegámos à Maxieira. Uma pequena aldeia no concelho de Mação composta por meia dúzia de habitantes, mas onde não se vê vivalma. Metidos em casa, culpa da idade que já não ajuda como outrora, e longe dos olhares dos estranhos que, sabe-se lá com que intenção, ali passam ‘de quando em vez’.
No meio de casas abandonadas pelo tempo e por aqueles que já foram para outra vida, há ainda quem lute contra o triste destino. Há quem tenha a coragem de trocar o tudo pelo nada, quem reconstrua o destruído e quem sobreviva ao amargo silêncio da solidão.
Laura herdou a casa dos sogros, uma antiga taberna. Mudou-se para ali para cumprir a promessa que fez ao marido de que iria fazer jus às suas raízes. Ficou viúva em 2005, poucos meses depois de perder a mãe. Encontrou aquele que pensava ser o seu refúgio, depois de uma vida de sofrimento. Veio à procura do descanso, do sossego do campo, do “semear, do plantar, do criar animais e ir à horta… essa bênção”. 2011 foi o ano em que tudo mudou e deixou para trás a cidade, “o stress de Abrantes”.
Quando chegou à nova mas tão velha casa “não tinha nada, nem água canalizada”. Aos poucos, vai tentando reconstruir cada canto “à minha maneira”, embora o infortúnio das chamas a tente, ano após ano, demover.
Vive sem luxos. Não se queixa do pouco que tem e do tanto que não tem. Destemida e confiante, é aquilo a que se chama uma força da natureza, quer pela sua coragem de ter vindo para “o meio do nada” quer pela sua vontade de arranjar sempre algo com que ocupar o tempo, que teima em não passar.
“A primeira coisa que faço de manhã é beber o meu café. Ligo os fios elétricos aqui em casa e lá vou ligar a desgraçada daquela máquina para beber o meu cafezinho. Depois vou regar a horta, mas demoro pouco tempo que a água é muito pouca”, conta-nos Laura, sentada à mesa enquanto corta uma fatia de bolo de iogurte ainda quente, junto a um caderno de receitas improvisado no qual vai “gatafunhando umas invenções”.
“Quando venho para cima, tenho ali uma capoeira com mais de 50 coelhos, vou tratar deles. Depois tenho cerca de 15 galinhas, vou lá tirar os ovinhos, tratar dos ‘piu pius’, e então depois vou tomar o meu pequeno-almoço como deve ser”, continua.
É na horta que Laura passa grande parte do seu tempo, onde semeia diferentes hortícolas e planta flores, que tentam dar um pouco mais de vida e cor à paisagem cinzenta que a rodeia
Enquanto pensa naquilo que vai fazer para o almoço – valha os pepinos, tomates, pimentos e outros tantos produtos da horta que não lhe deixam despertar a fome – entretém-se nas horas de maior calor com outro dos seus passatempos que se tornou já numa paixão: o ponto cruz.
“Tenho lá em cima uma cama que está forrada de quadros que mando emoldurar em Mação. Agora ando a fazer as estações do ano, já viu? É muito minucioso, demora muito tempo… mas é uma delícia. Os meus tempos livres é isto, aqui arranjo sempre que fazer… também tenho flores, sou fanática por flores”, conta com um sorriso aberto de quem fala com gosto.
“Isto é tão complicado. É tão monótono. Um ano, dois, três, a gente mantém-se. Mas depois ao resto morre esta pessoa, morre aquela, e são muito poucos os vizinhos. Tinha uma vizinha aqui em frente… faz-me tanta falta. Era sempre aquela janela aberta que era muito importante”
Mas há muito por desvendar para lá de um sorriso. Este sorriso esconde uma realidade menos feliz: a solidão.
Laura vive sozinha por opção. Diz não sentir falta de um companheiro. Apenas sente falta “de ter alguém com quem conversar… e do meu marido. Se ele fosse vivo eu estaria aqui à mesma. O meu marido é que queria vir para aqui, vinha todos os fins de semana, era aqui que ele gostava de estar, que ele se sentia bem… de maneira que aqui estou eu”.
“Isto é tão complicado. É tão monótono. Um ano, dois, três, a gente mantém-se. Mas depois ao resto morre esta pessoa, morre aquela, e são muito poucos os vizinhos. Tinha uma vizinha aqui em frente… faz-me tanta falta. Era sempre aquela janela aberta que era muito importante”, desabafa.
Mas é ao domingo que a palavra se impõe e se verbaliza: “O domingo é uma solidão. Não se vê ninguém. E também não posso ir para a horta… aqui olha-se muito a isso”.
Um isolamento acentuado por uma terra “que tem má fama, de as pessoas não se ajudarem umas às outras” que Laura tenta contrariar ao ir “à casa deste e daquele vizinho levar uma fatia de bolo e ver se está tudo bem”.
Laura tomou a decisão de vir para a Maxieira em 2011. Um refúgio onde o sossego é rei mas onde a monotonia dos dias e a falta de pessoas traz ao cimo o amargo silêncio da solidão
A visita das filhas ajuda a apaziguar o coração. Já as visitas ocasionais da GNR alertam-na para ter cuidado com os estranhos. E são muitas as histórias de desconhecidos que tem para contar: desde os que “vêm perguntar se sou reformada” aos que “vêm vender xailes dois a dois para um dar trela e o outro tentar entrar, mas eu não dou hipótese”.
Com o pequeno telemóvel que “anda sempre todo louquito” à mão, Laura está sempre alerta. E sai. Sai para a rua e agarra “nessa máquina com que os homens aí andam às costas para limpar as bermas e vou ali para trás da casa cortar ervas. E depois na horta limpo mais… mas para quê”.
“Ouvia-se aqui estoirar e eu disse ‘é agora’. O fogo ia subindo (…) e eu não queria ir ver porque senão desmaiava (…) Eu só pedia para não me deixarem arder a casa. Que não me deixassem na rua. A casa é velha mas estou cá eu”
O desabafo é inevitável e leva-nos à única coisa que assusta Laura: o fogo.
Em 2017, as chamas bateram à porta vindas de frente. “Ouvia-se aqui estoirar e eu disse ‘é agora’. O fogo ia subindo, subindo, subindo, e eu não queria ir ver porque senão eu desmaiava”. Perdeu “tudo o que havia de árvores na horta e umas oliveirinhas pequenas… as pobrezinhas nem chegaram a enraizar”.
As palavras soam a desalento e os olhos aguados são os de quem já passou vezes demais pelo inferno dos incêndios. Este ano, foi mais uma vez.
“Olhe, isto não tem explicação. Este ano, eu pensava que nunca mais tinha casa… Quando eu me levanto e vejo isto tudo preto começa-me a subir uma ansiedade tão grande que parece que até me falta o ar. Mas eu penso ‘meu deus, eu tenho de encarar isto porque não sou vítima sozinha’ ”.
“Eles deixaram arder tudo até chegar mesmo à casa. Deixaram arder mangueiras que traziam água da serra para os animais e para a horta, mas eu só pedia para não me deixarem arder a casa. Que não me deixassem na rua. A casa é velha mas estou cá eu e estou a pagar os impostos ao Estado”, afirma, com um tom de revolta que não dá para esconder.
Em 2017, os incêndios tentaram entrar porta dentro e roubaram a Laura parte do sustento: a horta. Este ano, as chamas chegaram pelas traseiras a uma velocidade tal que Laura admitiu mesmo que “pensava que nunca mais tinha casa”.
“Eles querem queimar o nosso concelho todo. Isto não para. Mação está escrito, não fica cá nada. E agora digamos: Isto é política? Mas que Governo é que nós temos? Os meios aéreos é que salvaram isto, que atuaram enquanto o diabo esfregava o olho”.
Recordar estes momentos leva Laura a questionar o porquê de tanta dedicação ao que se torna em nada. O cheiro a queimado que se entranha pela aldeia reflete a destruição visível e reforça o esmorecimento de uma escassa população envelhecida. O som do silêncio demarca um ambiente pesado, onde a vida é quase inexistente e a pouca força que resta tende a desvanecer-se.
Mas “já diziam os antigos: erguer a cabeça e seguir em frente”.
E é com esse lema de ir à luta que Laura vai tentando sobreviver. Com uma petiscada organizada pela comissão de festas de uma aldeia vizinha, onde o convívio se estende pela tarde dentro com o tradicional loto e com a sueca. Com uma visita semanal a Mação para “ver o que há de novo” nas lojas, graças ao Transporte a Pedido do Médio Tejo que “arranjaram há poucos anos e que me faz tanta falta”, porque, de outra forma, só indo a pé quase 14 quilómetros. E com a ida semanal à missa, onde reza para que o futuro seja “mais amigo da gente”.
A solidão existe, mas não trocava este lugar por nenhum outro, pois “as raízes” falam mais alto e a qualidade de vida é impagável. Seja pelo “chilrear dos passarinhos, a vivacidade das plantas a crescer, o poder colher uma flor aqui e uma couve além, o pegar no carrinho de mão e ir ao pinhal ver de caruma… e o sossego” que fazem com que Laura se sinta “mais à vontade sozinha” e veja o outro lado da solidão.
Um lado em que a determinação persiste, em que a força se junta à vontade, e em que existe espaço para o verbo sonhar. Aos 67 anos, o sonho da Laura é este: “Fazer voluntariado. Não sei de que tipo, mas gostava… gostava de ser útil, porque ainda estou com forças para isso”.
Reportagem: Ana Rita Cristóvão
Fotorreportagem: Carolina Ferreira