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Testemunho

O 25 de Abril de Isabel Cavalheiro

1/05/2024 às 11:30
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Nas comemorações dos 50 anos do 25 de Abril de 1974 foram muitas as ações de comemorações, mais ou menos festivas, mais ou menos emocionais. Em Abrantes Isabel Cavalheiro, professora de história, deixou o testemunho pessoal do que foi o antes do 25 de Abril de 1974 e como viveu o dia da Revolução. Um testemunho que evoca, no final as grandes manifestações do 1.º de maio em Abrantes.

 

(...) É uma honra e um prazer estar hoje aqui a comemorar o 25 de Abril convosco. O meu muito obrigado pelo convite que me foi dirigido.

Não vou fazer uma resenha histórica, apenas um pequeno depoimento de como vivi o 25 de Abril e o que representou para mim.

Falar do 25 de Abril é uma tarefa fácil e ao mesmo tempo difícil, porque são as emoções, os sentimentos de tudo o que se viveu que vêm ao de cima. É glorificar a Liberdade, o que por ela se lutou e o que ainda se tem de lutar.

E como dizia Miguel Torga

Livre não sou, que nem a própria vida

Mo consente.

Mas a minha aguerrida

Teimosia

É quebrar dia a dia

Um grilhão da corrente.

Livre não sou, mas quero a liberdade.

Trago-a dentro de mim como um destino.

E vão lá desdizer o sonho do menino

Que se afogou e flutua

Entre nenúfares de serenidade

Depois de ter a lua!

Deixem-me contar-vos um pouco do meu 25 de Abril. Todos nós o vivemos de maneira diferente, cada um à sua maneira.

Nasci em Abrantes, numa família da classe média. Educada pelos meus avós, frequentei um colégio de freiras até ir para a Universidade. Ensino católico, conservador, mas sinceramente não me provocou grandes danos, apenas uma revolta maior na criança rebelde que era. De certa forma estava vacinada contra tudo isso. Tive o contacto com as primeiras letras ao colo do meu avô, no jornal República, o único jornal que entrava na minha casa. Devo ao meu avô o conceito de liberdade e responsabilidade que me foi transmitindo, assim como outros valores pelos quais ainda hoje pauto a minha vida.

Vivi um quarto de século em ditadura e não quero voltar a ter essa vivência. Sei o que é o medo, a angústia, o desespero de não saber o que te espera ao virar da esquina. Tudo na ditadura é péssimo, mas o medo é talvez das piores situações. Ele atrofia-te, não te deixa avançar, inibe-te, é capaz de te transformar num farrapo. O medo era uma constante. Medo de nós e dos outros: medo do vizinho, do colega de carteira, do desconhecido com que nos cruzávamos na rua, da campainha da porta que tocava quando não se esperava visitas. É verdade que o medo faz parte da vida, por vezes até é saudável, porque nos alerta para determinadas situações, mas não é este medo, este é um medo que nos oprime, nos angustia, que nos destrói, que não nos deixa ser humanos. Eu senti esse medo, eu não quero nunca mais voltar a senti-lo, eu não quero que ninguém o sinta.

Muitas outras emoções se viveram. O encanto de se esconder, entre as sebentas, uns panfletos proibidos, o entrar numa livraria e sair de lá com um livro proibido, que o livreiro tirava, com todo o cuidado e atenção, de baixo do balcão ou do fundo de uma estante. Tenho bem presente o dia em que saí da Livraria Almedina, com A Praça da Canção, de Manuel Alegre, bem escondido entre os dossiers da faculdade, olhando para todos os lados, sentindo-me comprometida, sem qualquer razão, ansiosa por chegar a casa para me deleitar com as suas palavras, para alimentar o meu sonho de um mundo melhor. Atenção, a ditadura em que vivíamos também teve o condão de nos despertar.

 Ensinou-nos por exemplo, a ler nas entrelinhas, as notícias que a censura deixava passar. Há textos jornalísticos deliciosos, como por exemplo a descrição de um jogo de futebol entre as grandes equipes, em que conseguias perceber uma crítica ao regime vigente.

 Ensinou-nos o que era a bondade e a necessidade dela, assim como o conceito de solidariedade. Nunca esquecerei a bondade e a solidariedade dos habitantes de Coimbra que, sem nos conhecer, deixavam as suas portas entreabertas para nos podermos esconder, quando a polícia nos perseguia.

Só queríamos construir uma vida melhor, transformar um país pobre e triste em algo grandioso e inundado pelo brilho do sol. Não nos deixavam. Eram amarras por todo o lado.

 Um ensino obsoleto, privados de liberdade (palavra proibida), cercados pela censura, pela PIDE e arrastados para uma guerra que não era nossa, mas a que nos obrigavam. Tanta vida destruída, tantos sonhos desfeitos.

De repente, os nossos jovens são obrigados a trocar uma vida por um camuflado e uma espingarda e partirem para rumos desconhecidos, não sabendo se voltariam. E o medo, sempre o medo, sempre o medo…Ainda hoje, passados mais de cinquenta anos, não consigo descrever o que senti, a revolta, a dor, a raiva, o medo, o choro, numa manhã nebulosa de Setembro, no cais de Alcântara, a despedir-me de um grande amigo que partia para essa guerra. Ainda hoje, ouço o apito do Vera Cruz a afastar-se lentamente do cais, vejo os olhos embaciados dos familiares e amigos, as lágrimas que escorriam pelos rostos, a raiva que perpassava no ar, as mãos apertadas, a angústia, o desconhecido, o medo…

Não, nunca mais quero viver isto, que me marcou, que abriu feridas que, de vez em quando, ainda doem.

Mas mesmo assim, não me mataram os sonhos. Continuei sempre a lutar pela liberdade, por uma vida melhor.

Nunca me senti discriminada por ser mulher. Mas a mulher tinha um papel secundário nesta sociedade conservadora e machista. Era um ser inferior cuja única função era procriar e ser boa dona de casa. Era um ser inferior, na dependência do pai, dos irmãos, do marido. Não podia, por exemplo, ter uma conta bancária, sair para o estrangeiro sem autorização do marido e as enfermeiras e professoras primárias não podiam casar sem autorização do estado, porque o marido tinha de ter certos requisitos. Recordo que quando comecei a trabalhar tive de assinar um papel em que declarava que não pertencia a nenhuma organização que fosse contra o estado. Aparentemente, parecia que a mulher aceitava passivamente tudo isto, mas não. No silêncio do lar, nos locais de trabalho, nas faculdades, a mulher não se submetia e lutava com as poucas armas que tinha, para acabar com tudo isto. Também lhes devemos a conquista da liberdade.

Fui presa pela PIDE, na crise académica de 69. Não esmoreci, bem pelo contrário, ganhei força, coragem para lutar pelo que sempre defendi, e como diz Manuel Alegre:

Esta chama ateada no meu peito 

por quem morro por quem vivo  

este nome rosa e cardo por quem livre sou cativo.

Sobre esta página escrevo o teu nome: liberdade.

O tempo foi passando e íamos nos alimentando da esperança de que alguma coisa tinha de mudar. O regime estava caduco e dificilmente se manteria mais tempo. A guerra em África arrastava-se, sem qualquer solução à vista. A comunidade internacional isolava-nos, o Conselho de Segurança da ONU condenava-nos, através das suas sucessivas resoluções, mas o governo português não cedia. As poucas notícias da guerra, que a censura deixava passar, pouco nos diziam e o que se sabia era pela imprensa internacional (os poucos que lhe tinham acesso) ou pelas cartas (lendo nas entrelinhas) o que os nossos amigos nos contavam.

Pairava no ar o cansaço, a desilusão. Isto não podia continuar, algo tinha de ser feito. Por vezes chegavam-nos alguns ecos de reuniões clandestinas, que nos davam algum alento, alguma esperança. A Primavera Marcelista rapidamente se revelou um logro. A guerra era para continuar, a censura, agora chamada (Exame Prévio) a PIDE, agora chamada DGS (Direcção Geral de Segurança), a que nós chamávamos Direcção Geral de Saúde, pois continuava a tratar-nos da saúde, sempre solícita, sempre atenta.

A vida continuava com os sobressaltos do costume. Parecia que o tempo tinha parado. Até que a 16 de Março de 74 fomos acordados com a notícia de que o quartel das Caldas da Rainha saíra em direcção a Lisboa. Os sorrisos voltaram aos rostos, mas a duração foi curta. Mais um movimento que tinha abortado. Não podíamos esmorecer, não podíamos perder a esperança.

Sempre gostei mais da noite que do dia. Embora já trabalhasse, na madrugada do dia 25 de Abril, enquanto lia O Portugal e o Futuro, do General Spínola, ouvi na rádio o Grândola Vila Morena e pensei que o locutor estava louco por passar uma das muitas música do Zeca Afonso. Dormi. E quando acordei o rádio transmitia marchas militares. Não dei grande importância ao facto e fui trabalhar. Estava de serviço de vigilância de exames aos militares com um colega meu, homem afecto ao regime que sem me dizer bom dia, me perguntou o que é que eu sabia. Estranhei e mais estranhei quando, passado algum tempo, o Reitor entrou na sala, trocou, em voz baixa, algumas palavras com o senhor e saíram os dois.

O resto do dia foi agitado. Não houve aulas, os jornais não chegaram e passamos o tempo à volta do rádio na sala de professores a tentar perceber o que se passava. Entre as marchas militares, de quando em vez, apareciam uns comunicados do MFA que nos criavam toda a espécie de sensações. Não tínhamos dúvida que era um golpe militar, mas um golpe militar de que lado? Dos afectos ao regime? Dos oposicionistas? Era a dúvida, era o medo. Nessa tarde, por razões que não interessam, estive na porta de armas, do Regimento dos pára-quedistas, em Tancos, onde reinava um silêncio sepucral e uma calma aparente.

A pouco e pouco, as dúvidas iam desaparecendo. O regime caíra

E, como diz Sophia de Mello Breynner, finalmente a esperança renascia, o que se esperava acontecia

Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo

Os dias seguintes foram de euforia com alguma expectativa, ansiosos por saber o que se passava, ávidos de notícias, seguindo atentamente os jornais, a rádio , as emissões da televisão, o aparecimento da Junta de Salvação Nacional, as reportagens do Largo do Carmo, a rendição de Marcelo, o papel calmo e sereno de Salgueiro Maia, os cravos vermelhos no cano das espingardas…

O apogeu deu-se no 1º de Maio. O povo saiu à rua e extravasou toda a sua alegria, todo o desejo de uma vida melhor. O sentimento de liberdade pairou no ar, a sensação de ser livre, de não ter medo, o agradecimento profundo ao MFA, aos Capitães de Abril. Enquanto viver ser-lhes- ei, eternamente grata por me terem proporcionado tudo aquilo por que tinha lutado. Devo-lhes a alegria de viver, a paz, a liberdade. Que palavra bonita, abrangente, liberdade de falar, de expressar, de viver.

Depois as primeiras eleições livres, a Constituição de 1976, a Liberdade, finalmente a Liberdade.

Passaram-se cinquenta anos. Nem tudo foi fácil, por vezes bem difícil. As intentonas, as tentativas de voltar ao antigamente, o PREC, tudo esteve sempre presente. A luta não terminou, bem pelo contrário, como nos mostra hoje a conjuntura nacional e internacional. Não podemos baixar os braços. Temos de estar atentos e continuar a lutar. O 25 de Abril tem de se cumprir e isso, acreditem, depende de nós.

Deixem-me terminar como Ary dos Santos tão bem cantou:

De tudo o que Abril abriu

Ainda pouco se disse

e só nos faltava agora

que este Abril não se cumprisse.

(…)

E se esse poder um dia

o quiser roubar alguém

não fica na burguesia

volta à barriga da mãe!

Volta à barriga da terra

que em boa hora o pariu

agora ninguém mais cerra

as portas que Abril abriu!

 

Viva o 25 de Abril

 

Isabel Cavalheiro, 25 abril 2024