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OPINIÃO: «Bullying escolar, uma doença social», por Luís Barbosa

15/06/2021 às 08:34
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SALPICOS DE CULTURA...

«Bullying escolar, uma doença social»

Confesso que tem sido com alguma insatisfação que assisto às discussões que vêm fazendo tempo de antena sobre as questões do chamado “Bullying”. Não porque pense despropositado o que venho ouvindo, mas mais por sentir que a sociedade acha estranho o que se vai vendo. Para mim, sobretudo o que me confrange é ver que se tornou “viral”, como agora se diz, ver filmes que são produzidos e divulgados nas, também, tão chamadas “redes sociais”, por crianças ou adolescentes que demonstram não ter qualquer receio em ser os atores dos filmes, e até os seus realizadores e divulgadores.

Depois, fico também a pensar por que razão muitos dos adultos que são chamados a comentar as peripécias que os filmes mostram, parecem achar tão estranho o que se vai vendo. Claro que estou longe de aceitar razoável os espetáculos que os filmes e as cenas contadas relatam, mas dou comigo a conjeturar porque só agora a sociedade se mostra sensível à realidade do exercício do Bullying”.

Quando ainda em exercício de formador na área educativa tive a oportunidade de dizer, lá por volta dos anos oitenta do século passado, em muitas das ações que desenvolvi, que nessa altura estávamos no momento em que se tinha descoberto a criança. Queria eu dizer que sentia que só naquela altura se tinha começado a olhar para os novos com olhos de ver, já que até ali, na nossa sociedade, a criança e os jovens eram seres que até aos dezoito anos cresciam transportando às costas três slogans muito repetidos pelos adultos. Um era para dizer aos pequerruchos “cresce e aparece”, outro para os admoestar dizendo-lhes “cala-te, ou pensas que a formiga já tem catarro? e um terceiro muito tradicional servia para lembrar aos adolescentes que “só és homem quando fores à tropa, ou casares. Até lá, faz o que te mandam”.

Os slogans anteriores, que se assumiam comportamentos sociais alargados, tinham um carater admoestativo, e foram durante muitos anos tentativas de condicionar as emoções das crianças e jovens, que caso não cumprissem com o esperado, sabiam que da admoestação à “chapada” corretora não decorria mais que o tempo de um breve instante. As recomendações anteriores eram, no seio das famílias, coisas normais, e em muitas das escolas primárias ainda se tinha, ao tempo, tanto a “menina dos cinco olhos” que servia para que o professor batesse forte nas palmas das mãos dos alunos quando estes não sabiam o que quer que fosse, a famosa “régua” que era utilizada para dar umas boas reguadas nas mãos, e às vezes até em outras partes do corpo, quando as questões eram de comportamento, ou até o não menos famoso “ponteiro”, que servia para que as cabeças estivessem, nas carteiras, todas bem alinhadas, umas atrás das outras, e as bocas bem silenciosas. Ficar-se com orelhas de burro, calado e virado para a parede uma manhã, ou tarde inteira, porque se tinha dado erros, ou feito mal as contas, eram humilhações comuns e aceites como boa prática. Levar chapadas porque se era canhoto e tinha de se saber escrever com a mão direita, constituía-se obrigação a cumprir, e ser alcunhado por colegas, e não só, por se ter uma qualquer deficiência física ou mental, também era normal.

O curioso é então que até lá por volta dos anos oitenta, as formas de estar na nossa sociedade tinham por esteio, entre outros, os comportamentos sociais que acima deixo expressos. Claro que na altura ninguém pensava que tais maneiras de estar fossem Bullying social”, mas que ainda eram correntes, disso não se tenha a menor dúvida.

E nas escolas? O que mais se passava? Bem, ainda me lembro o que era ser caloiro, ou seja, alunos mais novos, que eram assim chamados por terem entrado pela primeira vez para a escola que se seguia à primária. Os mais velhos, normalmente os do último ano, esperavam os caloiros à entrada dos portões das escolas e à medida que estes iam entrando corriam os noviços dando-lhes, com as mãos fechadas, murros na cabeça, e com elas abertas rudes palmadas no pescoço. Depois, em cada intervalo das aulas, faziam as chamadas “esperas”, ou seja, punham-se em fila à saída da porta que dava para o recreio, e à medida que os caloiros iam saindo voltavam aos comportamentos anteriores. O tempo do recreio era passado a levar tareia, e quem fosse catalogado de maricas (para não dizer uma palavra mais vernácula) era marcado à zona e passava a ser ridicularizado todo o ano. Os mais velhos impunham as suas leis e os mais novos faziam o que podiam para escapar a tais tormentos. Só quando se chegava ao último ano, e se ganhava a bênção de se poder ser chamado de finalista, é que o ambiente mudava. Fazer queixa destas torturas aos pais era impossível, não só porque quando se chegava a casa estava-se destroçado, mas também porque a raiva interior fazia com que se calasse a repressão. Não me lembro de ter alguma vez assistido na escola a queixas de pais indignados com as atitudes anteriores, ou mesmo de ter assistido a reprimendas às mesmas feitas por quem de direito, e até tenho a convicção que as mesmas eram, também na altura em que era jovem, socialmente aceites como algo de normal. Aconselhar, este ou aquele adulto, para dar duas “lambadas” às crianças quando estas fugiam do carril, fazia parte das “boas maneiras” sociais.

Pode então perguntar-se que têm a ver as atitudes aqui desenhadas com o facto de me sentir hoje insatisfeito por ver o Bullyingentre crianças e efetuado nas escolas, trazido à luz do dia? Bem, repare-se que entre a altura em que dei conta a muitos profissionais da educação que pensava que a criança era ao tempo, ou seja por volta de 1980, uma descoberta recente, e o momento atual, decorreram perto de quarenta anos, ou seja, só passado este longo tempo é que a sociedade parece estar a olhar para uma realidade que foi, durante um vasto período da nossa história, coisa corrente e até socialmente aceite.

É um facto que hoje já não existem nas escolas os instrumentos coercivos anteriores, e que na televisão até se veem crianças a relatar com indignação cenas impróprias da boa convivência social. Porém, quatro interrogações faço para mim mesmo: será que os comportamentos a que me referi foram assim tanto substituídos por outros menos infusivos? Acaso se pensa que as rudes maneiras antigas de estar já desapareceram da sociedade? Tem-se a noção exata da influência que as modernas e tão sofisticadas formas de influenciar comportamentos podem trazer à sociedade, seja em casa, no seio da família, ou na escola? Para finalizar, ainda uma outra interrogação: acaso será a intervenção dos tribunais o melhor dos antídotos para os comportamentos sociais de que o «“Bullyingescolar» é espelho?

Despeço-me com amizade,

Luís Barbosa*

*Investigador em psicologia e ciências da educação
SALPICOS DE CULTURA, uma parceria com a Associação Internacional de Estudos Sobre a Mente e o Pensamento (AIEMP)