Salpicos de Cultura CRÓNICA: A quietude inquieta, por Luís Barbosa
SALPICOS DE CULTURA…
Não me tem sido fácil assistir na televisão a muitas das manifestações que vou vendo e em que seres humanos, a propósito das mais variadas ideias ou pretextos, se exibem nas ruas de forma bélica. Destas manifestações as marchas que acabam em confronto com as forças policiais são as mais correntes, ou pelo menos são aquelas a que os chamados “media”dão muita atenção.
Não sou especialista em coisas da sociologia urbana, mas desde muito cedo interessei-me por aquilo que sociólogos iam estudando, dizendo e escrevendo sobre o movimento das chamadas multidões. Por isso quando vejo os tumultos que se registam no mundo, um pouco por todo o lado, fica-me sempre a impressão que algo de muito profundo, e que está para lá de ideologias ou valores, justifica muitos dos comportamentos que vou constatando. Um deles tem a ver com a forma como, em muitas manifestações uma certa quantidade de pessoas começa a marchar pelas ruas, de forma ordeira e, de repente, num ápice, passa a exibir atitudes de confronto que muitas vezes acabam em autêntico vandalismo.
Fico atento aos chamados comentadores, pois aceitando-se que sejam pessoas preparadas para saber interpretar tais fenómenos sociais, parece acertado que ouça as suas opiniões. Contudo, o que mais me surpreende, é que no momento atual, face a muitas das desordens que se constatam, verifico que alguns desses comentadores se ficam mais pelas interrogações perplexas que por explicações seguras quanto à razão porque tais mudanças repentinas de atitude ocorreram.
Aceito que se saiba ainda pouco sobre os comportamentos dos grupos humanos, e tenho para mim que ser comentador de manifestações urbanas é tarefa exigente. Contudo penso que muitos dos comentários que ouço no sentido de valorizar as exacerbações por razões ideológicas ou de justiça social pecam, não raro, por erro de análise.
Para mim tenho que sobre certos aspetos, nós humanos, ainda estamos muito presos a instintos que nos colocam perto dos primórdios da nossa própria humanização, e retenho que a Educação não tem ajudado muito a que saiamos desta nossa primeira casa. Retenho dois aspetos: um tem a ver com o facto que muitas vezes reparo que nas franjas das manifestações violentas, muitas das pessoas que se mostram agressivas expressam no rosto alegria, prazer e satisfação, o outro ouvir muitos especialistas na área político social dizerem que estes sorrisos e manifestações de júbilo são marcas de radicalismos fundados em nacionalismos de tradição.
Bem, tenho lido alguma coisa sobre estes assuntos. Mas existe uma obra onde encontro explicações para a tal agressividade que, em muitos casos é até exibida com gritos de vitória. No livro “O Homem e o Sagrado”, de Roger Caillois, publicado pelas Edições 70, permite-me fazer algumas inferências. Porquê? Porque acreditando eu que muitos dos tais comportamentos agressivos não são manifestações compagináveis em lutas por ideais, entendo-os mais como respostas de festins que ainda animam o homem sem que disso os seus manifestantes tenham consciência.
No capítulo 4 titulado O Sagrado de Transgressão: Teoria da Festa, a páginas 95 o autor diz:
“À vida regular, ocupada nos trabalhos quotidianos, sossegada, sujeita a um sistema de interditos, cheia de preocupações, em que a máxima «quieta non movere» mantém a ordem do mundo, opõe-se a efervescência da festa.”
Ora o que para mim está em causa é justamente saber até que ponto quem se manifesta através da violência gratuita, mas com sorriso na cara e gritos de vitória não éum usuário compulsivo destes instintos de festins e que, ao contrário do que muitos pensam, sente necessidade de se manifestar contra a pseudo paz quotidiana em que se vive,na qual se está de facto sujeito a imensos sistemas de interdições, sentindo sobre as costas inúmeras preocupações, e que reage à presença de uma sociedade que parece quieta, mas que, no entanto,para muitos,se vai movendo para fora da ordem do mundo e que por menos capacidade de racionalizar emoções acaba por antever, nas tais manifestações violentas, não ocorrências que desequilibramainda maiso frágil sistema social em que se vive, mas sim formas de festins.
Bem, que eu aqui não seja entendido como um moralista, muito menos um condenador social, mas tão só como um cidadão que, certamente como muitos outros, se interroga face a acontecimentos que gostaria menos de ter como imagens do seu quotidiano.
Aproveitando para desejar que cada um consiga passar os dias de forma apaziguadora e estabilizada, despeço-me com consideração,
Luís Barbosa*
*Investigador em psicologia e ciências da educação
SALPICOS DE CULTURA, uma parceria com a Associação Internacional de Estudos Sobre a Mente e o Pensamento (AIEMP)