Quando há uma obra num centro histórico de uma vila ou cidade há, obrigatoriamente, o acompanhamento das intervenções por um, ou uma equipa, de arqueólogos. Quando se escava em zonas onde se pense terem existido outras construções, ao longo da história, é provável haver achados. Podem ser estruturas, fragmentos de objetos, moedas, objetos de cerâmica ou metálicos, de pedra ou ossadas.
Foi o que aconteceu na intervenção no cineteatro S. Pedro, em Abrantes. A obra prevê a requalificação de todo o interior e implicou remover toda a plateia, havendo necessidade de retirar terra. Aí surgiu, em maio deste ano, o primeiro achado ou achados.
A equipa de arqueologia, constituída por um arqueólogo e duas antropólogas, começou por encontrar despojos do que teria sido uma zona de construção. Ou seja, a escavação permitiu identificar paredes de antes de 1930, altura em que foi construído o cineteatro, e uma dessas parece, afiançam os especialistas, era da Igreja de S. Pedro. Uma igreja que ali existiu e que, presume-se tenha tido o seu altar no sítio onde hoje é o estacionamento frontal ao cineteatro.
Nelson Borges, o arqueólogo que aceitou receber a nossa reportagem explicou que “no interior da plateia percebemos que havia vestígios dos Séculos XVII, XVIII e XIX, nomeadamente vestígios urbanos. Foi aí que a apareceu a parede posterior da igreja de S. Pedro demolida antes de 1930 com construção no Século XVI ou XVII.”
Fotos cedidas pela equipa de investigação
Após recolhidos todos os objetos, desenhado e fotografado o espaço intervencionado a equipa passou para o exterior onde, ao lado do bar havia uma espécie de quintal e para onde vai ser ampliado o cineteatro com construção de um “anexo” novo, um cais de acesso técnico e o novo posto de transformação. E foi nesse aterro que Nelson Borges e as antropólogas Inês Lisboa e Sofia Cruz foram surpreendidos.
Conta o arqueólogo que no acompanhamento do trabalho mecânico, quando as máquinas retiravam terra começaram a descobrir enterramentos. De imediato todos os trabalhos da empreitada pararam nesse local para entrarem os técnicos com “as suas ferramentas”.
As máquinas foram substituídas por colheres, pás, pincéis, pinças, peneiras e por aí fora para, com cuidado, por a descoberto os achados. “Encontramos um aterro e identificamos 5 ou 6 enterramentos. Começamos a trabalhar os talhões e percebemos serem 10 ou 1”, conta Nelson Borges. E a precisão do arqueólogo aponta a enterramentos ordenados, este/oeste e bem definidos num local que seria um terreno anexo a essa igreja de S. Pedro.
Uma das notas, explicou é que nalguns destes casos foram encontradas ossadas de adulto e criança.
Os trabalhos continuaram com a morosidade normal destas operações. Quando visitamos a escavação as duas antropólogas, de joelhos, estavam a retirar a terra de outro enterramento, por forma a deixar a ossada visível e limpa para poder ser feito o trabalho de fotografia e desenho.
Fotos cedidas pela equipa de investigação
O arqueólogo vai explicando todo o processo. “As ossadas são registadas e depois são recolhidas para trabalho de laboratório. Depois de todo esse processo laboratorial concluído, o espólio será todo entregue ao Município, neste caso ao Museu Ibérico de Arqueologia e Arte de Abrantes.
Ao todo a equipa de investigadores encontrou 24 enterramentos. E a pergunta seguinte foi, naturalmente, qual a época desses enterramentos.
Nelson Borges, Arqueólogo
Nelson responde “quase de certeza 1810 ou 1811.” E como aponta para esta data precisa? Junto a umas ossadas “encontrámos botões e fivelas do fardamento do Regimento 22." Tropas portuguesas que na época combateram a invasão napoleónica comandada pelo general Massena. “Pode ter sido resultado de uma pequena batalha, uma pequena escaramuça e com os cemitérios cheios pode ter sido este um local de enterramento.
Nelson Borges indica que não encontraram um cemitério, mas um local de enterramento num período curto.
A chuva deste mês não tem ajudado nada os trabalhos do arqueólogo e das antropólogas, já que os ossos não gostam de água, provoca uma deterioração acelerada, por isso sempre que vem uma nuvem a largar água é preciso tapar de imediato os locais onde estão a trabalhar.
O tempo que vai demorar a análise aquele local não é conhecido. São trabalhos minuciosos e de pormenor. O certo é que enquanto o trabalho não estiver dado como concluído a obra não pode avançar para aquele espaço. Apesar de o dono da obra ser o Município de Abrantes a intervenção arqueológica é tutelada pela Direção-Geral do Património Cultural, passando a autarquia a ser uma espécie de observador.
João Gomes, vice-presidente da Câmara de Abrantes, sublinhou o facto de quando apareceram as primeiras descobertas foi redesenhado o plano dos trabalhos, avançando a requalificação nos locais e trabalhos onde era possível. Com a descoberta dos enterramentos a empreitada começa a somar atrasos uma vez que não é possível começar os trabalhos de ampliação do cineteatro. E a preocupação cresce porquanto a empreitada tem de cumprir prazos por causa do financiamento. Mas o Município, nestes casos, está de mãos e pés atados e resta-lhe avançar com o possível. Por exemplo, a pintura exterior já está feita. A expetativa de João Gomes é que a meteorologia não seja mais um motivo de atraso das escavações.
João Gomes, vice-presidente CM Abrantes
Nelson Borges revela ainda outro ponto que ainda falta explorar e que é “muito sensível. Temos de fazer a vala para liga o posto de transformação à rede elétrica e temos de passar pelo estacionamento frontal ao cineteatro [local onde seria originalmente o altar da antiga Igreja de S. Pedro]. E esta vala atravessa esse local.”
Em arqueologia não se sabe o que se pode encontrar ou não. Sabe-se que há locais mais sensíveis do que outros, mas o olhar atento dos especialistas é que permitirá poder a descoberto os achados que estão enterrados à mais ou menos séculos. E depois nunca se sabe o que é que se poderá encontrar.
A equipa de especialistas diz que não são questionados por cidadãos ou não há quem ali vá espreitar, até porque a estação de arqueologia está dentro da empreitada.
A empreitada de Restauro, Reabilitação, Remodelação e Ampliação do edifício do Cineteatro São Pedro foi adjudicada por cerca de 2,8 milhões de euros à firma João António Gonçalves, Engenharia, Lda. O prazo de execução é de 15 meses, pelo que a obra, em condições normais deveria estar concluída em março/abril de 2024. Resta saber que implicações terá na empreitada esta descoberta e as necessárias escavações.
Jerónimo Belo Jorge